sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

E AGORA JOSÉ?

 E AGORA JOSÉ?


        Ouvindo o poema de Drummond na voz de Paulo Diniz, veio-me um lampejo acerca de nossa realidade presente. Peço vênia ao grande escritor para, com a devida humildade, tecer alguns comentários aproveitando-me da genialidade de seu grito. 

        O poema se refere a "um homem", José, que representa uma realidade de uma coletividade. Os muitos "Josés", que enfrentam suas vidas no pós-festa, na luz apagada, no vazio da existência, trata-se do homem comum, que age como qualquer outro ao zombar, ao fazer versos, ao amar e ao protestar.

         Mas quando tudo lhe é retirado, ele se encontra com seu vazio existencial, seu oco emocional, de modo tal que - estando totalmente cavo, sem mulher, sem discurso, sem bebida, sem cigarro - encontra na noite fria a total ausência de possibilidade de fuga nas coisas cotidianas, que não passam de mera utopia. Tudo acabou, tudo envelheceu, tudo mofou. 

          Nesse momento, em que o homem se depara com seu vazio, até aquilo que é exaltação de si, por meio de coisas materialmente representadas (a biblioteca, a lavra de ouro, o terno de vidro) perde o sentido. Tudo isso, agora, lhe é incoerente. Diante disso, nem saída para sua dor ele encontra: não adianta gritar, nem gemer, nem o glamour da valsa vienense, nem dormir, nem cansar, nem morrer,  "mas você não morre!"

         A genialidade do texto, expondo os "Josés" da vida, me fez transferir as ideias do poeta para a realidade presente, momento em que uma pandemia nos retira coisas que julgávamos essenciais, a saber, academias, parques, bares, reuniões sociais, festas. 

          E agora, José?

          As vidas secas, que não passam de misérias adornadas, foram esvaziadas do ter e do fazer. E agora, José? A festa acabou, a luz se apagou, o povo sumiu, a noite esfriou! E agora, José? Os vãos preenchidos por coisas ocas desencontram-se da efêmera alegria.

          E agora, o que fazer, como disse o poeta, se querendo abrir a porta, não existe porta; se querendo morrer no mar, o mar se secou? Deparamo-nos com a vida como ela é, e somos obrigados a encará-la, destituída de qualquer coisa não essencial. Destituídos de nossas indumentárias de ilusão, nus diante do espelho, vemo-nos como realmente somos e encaramos nossos próprios monstros e nosso próprio eu, outrora encobertos pelas vãs ocupações. 

         Descobrimo-nos "sozinhos no escuro, qual bicho-do-mato", sem apoio, e obrigados a continuar nossa marcha, pois a vida assim impõe, pelo que se questiona o poeta:  "José, para onde?".  Tomando por empréstimo o mote do poeta, quero repeti-lo a você leitor: "José", para onde? Para onde podemos correr se em nosso vazio – à semelhança do José drumoniano - não temos teogonia e não encontramos uma parede de apoio, nem sustentação?

         Esse novo tempo deve nos levar a desviar os olhos das efemeridades e a tocar na essência das coisas com o olhar voltado para dentro. É mister que nos destituamos de tudo o que é passageiro, abandonemos tudo o que é externo, tudo o que é vão. 

             Mas, se o vazio do ser o levou a considerar as ocupações mais sofisticadas (Facebook, Instagram, Lives) como substitutas ilusórias da verdadeira alegria, temos que o mesmo engano se vestiu de outra roupagem. Não seria hora de voltar os olhos para o lugar que jamais deveria ter desviado, a saber, a essência da Vida, cuja natureza provém do próprio Deus?

         Não seria este o momento de rever os conceitos, quebrar as cadeias, abandonar os exteriores? Na correria dos dias de outrora, nas ocupações das coisas efêmeras, estávamos vazios. Não será, portanto, com novas ocupações, com disputas de discursos inflamados e de veios apaixonados, que o ser humano tornará à fonte de águas vivas, tampouco o será nas Lives de grandes artistas. Não que haja problema em disso participar. A questão fundamental é: onde teremos nossa existência preenchida, onde encontrar essa alegria não transitória? 

            "Eu sou o caminho", asseverou o Cristo há quase dois mil anos, eis a resposta!

          Mas como percorrer esse caminho se muitos, na tentativa de trilhá-lo, o fizeram por meio de religiões, dogmas, sacrifícios e até matando em nome de Deus?

           Como trilhar esse caminho, buscar essa verdade e alcançar a Vida, se os templos estão fechados, se as ocupações  do cotidiano religioso não mais existem? Como achar a verdade se nos foram retirados todos os mecanismos exteriores de busca?

            A resposta a esse questionamento, que é universal, pois consiste na busca de todo indivíduo, é simples: olhe para dentro de si, pois, como asseverou Pedro, o Apóstolo, todas as coisas concernentes à vida já nos foram entregues em Cristo, que em nós habita!

          É preciso voltar-se para o alvo, que é Cristo, cuja Vida preenche todas as coisas, embora muitos, por uma inconsciência do ego não o possam ver. Voltar-se a Ele, que excede o tempo, excede o material, não sendo encontrado em coisas, mas somente em um coração quebrantado, que reconhece ser total e integralmente dependente Dele.

          Essa Vida em nós não é uma doutrina nem uma cartilha a ser seguida, mas uma realidade a ser buscada num relacionamento interior.

           Se quiser falar com Deus, cave fundo no coração, arranque as ocupações, livre-se dos dogmas, retire todas as amarras religiosas, apague a luz, cale a voz, encontre a paz, esvazie-se de si. 

           A Vida é relacionamento, e nada mais.

          Para onde, José? Para a Vida!


          Marcio Almeida - Canal no YouTube - DESDOGMATIZANDO A FÉ

(Obs.: Esse texto faz menção ao Poema de Drummond, “E Agora José?”, e à música de Gilberto Gil, “Se Eu Quiser Falar com Deus”)

sábado, 10 de outubro de 2020

Da página "O Pouco que Sinto" - https://www.facebook.com/opoucoquesinto

Você precisa ser sincera.
Independentemente de qualquer coisa, respeite aquilo que você sente, entenda realmente o que você quer, encare as suas expectativas, use o que passou como experiência e seja sincera.
Seja transparente não apenas com você, mas acima de tudo com o outro.
Pode parecer racional demais encarar a realidade dessa forma quando estamos falando daquilo que é sentido.
Eu sei, realmente não é fácil, mas entenda o quanto tudo isso é necessário para que as coisas sigam da melhor maneira possível.
Na maioria das vezes, quando há algo que gera algum desconforto na sua relação, você se pergunta aonde você está errando. 
Nesse momento fica claro o quão importante é o diálogo e a necessidade de que haja sinceridade sobre o andar das coisas. 
É preciso que você perceba e encare que relações são construídas e passam por processos em que há a necessidade de acertar as arestas para que ambos estejam confortáveis com o que se vive. Você pode estar sim errando, mas não esconda o que sente. 
NÃO ANULE A SUA VIVÊNCIA. 
Se há alguém do outro lado que está disposto a segurar sua mão, ele precisa enxergar o que há além da pele.
Não tenha medo de errar.
Não tenha medo de falar demais.
Não fique presa nesse espaço que você criou e que deposita questões da sua relação para lidar com elas sozinha.
Respeite o que você é
o que você vive
o que você sente 
e sinta.
Não deixe que o medo em uma relação faça você ser qualquer coisa diferente de você mesma.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Da página "O Pouco que Sinto" - https://www.facebook.com/opoucoquesinto

Em algum momento você vai entender que nada é plano e uniforme quando se vive.
Há expectativas e projeções que muitas vezes não condizem com a realidade.

Isso não precisa ser entendido como o fim. 
Você vai errar de vez em quando. 
Em algum momento a dor vai ser latente e a sensação de insuficiência e incapacidade pode se fazer presente.
O que você é não te traz conforto.
O que você tem não condiz com o que você idealiza.
No final, você arde por querer seguir, mas também não sabe aonde quer chegar.
E tudo acaba se tornando uma busca desenfreada por alcançar uma utopia que não lhe traz garantia de nada. Por quê?

Eu tenho sido injusta comigo.
Tenho a oportunidade de vivenciar momentos incríveis, mas a minha insegurança e o meu medo constantes me dominam. 

Eu sinto minhas pernas trêmulas, meu corpo inquieto e a sensação de que tudo vai sair do lugar.
De alguma forma eu vou me anulando aos poucos no momento em que me inferiorizo em relação ao outro e acredito piamente que não, eu não vou conseguir ser feliz.
Eu busco ser a melhor, não me permito falhar e não consigo relaxar em momento algum.
Eu cresci moldando o meu corpo para estar sempre pronto para o pior, mas o pior tem sido esperar a todo instante o que nem sempre vem.
Eu busquei a perfeição olhando para fora e nunca lidei com o que de melhor há aqui dentro.
Eu transformei amor em dor, por achar que não merecia nada diferente disso.
E estou cansada.

Agora me pergunto o que eu tanto idealizo com relação a mim, aonde eu quero chegar e quem eu sou?
Aos poucos vou olhando para o meu corpo, encarando os espaços que ele ocupa e aprendendo a me respeitar.
Não quero ser injusta.
Não quero mais a sensação de nunca ser o suficiente quando, na verdade, eu tenho sido o meu melhor.
Quero poder me abraçar, aproveitar as relações que vivencio em sua totalidade e entender o quão humano é não ser perfeita.
Em algum momento eu quero enxergar e amar aquilo que eu sou.
No meu tempo.
Com calma.
Sem pressa.
Vou seguindo esse processo.

O importante é que agora a minha meta é me permitir viver.


sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Texto de Victor Fernandes

A imagem pode conter: texto


Por muito tempo fui defensor daquela ideia de que as pessoas só dão valor quando perdem. Mas, hoje, ao observar muitas histórias, percebo que, em 90% dos casos, as pessoas sabem, sim, o valor daquilo que têm nas mãos, sabem a sorte que possuem, sabem o quanto aquela outra pessoa é importante, o quanto ela faz bem. A verdade é que as pessoas se acomodam, relaxam, ou simplesmente acham que as outras vão ficar pra sempre, vão esperar, vão aguentar tudo. Confiam demais que o amor aguenta qualquer coisa, mas não é assim que a banda toca. Amor não aguenta desprezo, descaso, ferimentos ao amor próprio. Relações não sobrevivem à ausência de reciprocidade, ao desinteresse, à falta de esforço. E isso não quer dizer que a pessoa não tenha noção do seu valor. Ela sabe. Ela só não quer mais, não gosta mais, não se interessa mais. •


Quem te perdeu talvez não admita, mas sabe, sim, o seu valor e a falta que você faz. Sabe o quanto você gostou, o quanto você quis, o quanto você se esforçou. A gente sempre fica achando que é falta de percepção alheia, mas raramente é. No dia a dia a gente vai percebendo os sentimentos, as vontades, os desejos. Não é possível que as pessoas convivam tanto e não percebam que ali tem uma infinidade de valores incríveis. Não caio nessa mais. Simplesmente, não caio. Elas sabem a sorte que morava na vida delas. 🌻💙

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

TABACARIA, Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterónimo de Fernando Pessoa

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Perfeccionismo, por Rodrigo Escovedo

A característica básica do ser humano é que ele é um ser sociável. Atualmente, as redes sociais são as maiores responsáveis por essas interações, o que acaba distorcendo o que era pra ser uma relação saudável. É também o que agrava o problema do perfeccionismo por ser a maior fonte de informação sobre o que acontece tanto com pessoas íntimas, que estão perto de nós, geograficamente falando, quanto com aquelas que nunca tivemos ou possamos ter contato um dia. E o que estamos vendo a cada milésimo de segundo, a cada vez que atualizamos uma página, são mais e mais pessoas felizes e realizadas do que realmente existem fora desse ambiente virtual. É por isso que os padrões para ser perfeito e ter uma vida perfeita acabam sendo desumanos e inatingíveis.

A sociedade contemporânea é quem impõe essa ditadura, onde todos temos que ter sempre um desempenho impecável. Porém, essa cobrança pelo perfeccionismo não torna as pessoas mais bem-sucedidas. Pelo contrário, as torna mais frustradas, incapazes de celebrar suas pequenas vitórias, pois seus olhos estão sempre voltados para o que ainda não conquistaram.

E o que torna o perfeccionismo uma tendência é o fato de que, culturalmente, ele se tornou algo positivo, pois se dizer perfeccionista pode parecer um autoelogio ou até mesmo falsa modéstia. Por isso, ele só é visto como um problema quando passa a ser visível, ou seja, passa a prejudicar as relações e até mesmo, a própria saúde, causando depressão, ansiedade, estresse, baixa autoestima, alienação, o que pode levar ao suicídio.

Agrava inclusive a sua produtividade, já que o perfeccionista deixa o resultado definir quem você é. Exige tanto de si, busca fazer tudo sem erro e sem nenhuma possibilidade de ser criticado que prefere não fazer do que fazer errado, tornando-se um procrastinador e com uma produtividade muito abaixo do que poderia alcançar. Mas saiba que o feito é muito melhor do que o perfeito.

E a Bíblia não nos ensinou a ser perfeitos. Deus sempre nos ensinou a respeitar o processo, a caminhada, e nos assumirmos como pessoas falhas e pequenas a fim de glorificar a grandeza dEle e o domínio que Ele tem sobre as nossas vidas. Por isso, não somos pecadores porque pecamos. Pelo contrário, pecamos porque somos pecadores. Assumir que somos falhos vai contra o egocentrismo de achar que somos ou que podemos ser perfeitos. E o passo mais importante para aceitar essa nossa condição é deixar que Deus assuma o controle sobre nós.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

INTIMIDADE, por Victor Fernandes (adaptado)

Intimidade não depende de tempo, ela depende da nossa disposição para mergulhar no outro. Já criei laços fortíssimos em apenas alguns dias. Tem gente que convivo faz muito tempo e não me sinto íntimo. 
Intimidade tem a ver com enxergar de verdade o outro. Não só ver, mas entender, tentar decifrar, tentar fazer parte. 
Intimidade é você saber o gosto e, principalmente, você respeitar o gosto. 
Intimidade é você ouvir sem preconceitos e conclusões precipitadas. 
Intimidade é você se sentir parte da vida do outro e ter interesse verdadeiro em abrir sua vida para que o outro se sinta confortável nela. 
Intimidade não tem a ver com conviver todos os dias, mas sim viver de verdade os dias ao lado do outro. Viver cada momento em que estão juntos. Com atenção, vontade, interesse real. 
Intimidade não se força, não se ensina, não tem como obrigar. Ela surge espontaneamente e desenfreadamente.
Intimidade é sobre conexão forte, que se faz presente, às vezes, em menos de quinze minutos de conversa. 
Intimidade é uma conexão rara, que sem forçar, você sabe que aquela pessoa entrou na sua vida. É dessas coisas que independem de convivência, é sentida. Isso é intimidade.