quinta-feira, 29 de outubro de 2015

NO CORPO, Ferreira Gullar

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

NÃO HÁ VAGAS, de Ferreira Gullar

O preço do feijão
não cabe no poema. 
O preço do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

terça-feira, 27 de outubro de 2015

COR-RESPONDÊNCIA, de Elisa Lucinda


Remeta-me os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem feito
que você tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era o seu jeito
ou de propósito
mas era bom, sempre bom
e assanhava as tardes.
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois.
Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

DAS UTOPIAS, de Mário Quintana

Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

(Quintana de Bolso – Coleção L&PM Pocket)

sábado, 24 de outubro de 2015

INSCRIÇÃO NA AREIA, de Cecília Meireles

O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!

Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?

O meu amor não tem
importância nenhuma.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

ARTE-FINAL, de Affonso Romano de Sant’Anna


Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
quem toma uma por outra
confunde e mente.

O BLUEBIRD, de Charles Bukowski


em meu coração tem um pássaro
que quer sair
mas eu sou mais forte que ele,
eu falo, fica aí dentro, eu não vou
deixar ninguém
te ver.

em meu coração tem um pássaro
que quer sair
mas eu taco uísque nele e respiro
fumaça de cigarro
e as putas e os barmen
e as caixas do mercado
nunca sabem que
ele está
aqui dentro.

em meu coração tem um pássaro
que quer sair
mas eu sou mais forte que ele,
eu falo,
fica na tua, você quer me por
em apuros?

em meu coração tem um pássaro
que quer sair
mas eu sou mais esperto, só deixo ele sair
de noite às vezes
quando todos estão dormindo.
eu falo, sei que você está aí,
então não fique
triste.

daí o ponho de volta,
mas ele ainda canta um pouco
aqui dentro, eu não o deixei morrer
totalmente
e a gente dorme junto desse
jeito
com nosso pacto secreto
e é bem capaz de
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro, você
chora?

Charles Bukowski, poema “O Bluebird”, do livro “Essa loucura roubada que não desejo a ninguem a não ser a mim mesmo amém” (7 Letras, pg. 155)

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A ALVORADA DO AMOR, de Olavo Bilac

Um horror, grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:
Chega-te a mim! entra no meu amor,
E e à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençoo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!

Vê tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação…
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calefrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu…

Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
E, vendo-te a sangrar das urzes através,
Se amaranhem no chão as serpes aos teus pés…
Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,
Ilumina o degrêdo e perfuma o deserto!
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo tudo, levando o teu corpo querido!

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:
Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,
Porque a vida perpétua arde em tuas entranhas!
Rosas te brotarão da bôca, se cantares!
Rios te correrão dos olhos, se chorares!
E se, em torno ao teu corpo encantador e nú,
Tudo morrer, que importa? A natureza és tu,
Agora que és mulher, agora que pecaste!
Ah! bendito o momento em que me revelaste
O amor com teu pecado, e a vida com o teu crime!
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,
Homem fico na terra, luz dos olhos teus,
Terra, melhor que o Céu! homem maior que Deus!

terça-feira, 20 de outubro de 2015

SIM, ALGUÉM VAI TE AMAR, por Pedro Araújo

Sim, alguém vai te amar do jeito que você é. Vai amar seus defeitos, seus medos, suas inseguranças, seus anseios e seus desejos mais íntimos. Vai te esperar na porta, se preocupar se você atrasar ou mesmo mandar aquela mensagem discreta perguntando onde você está.

Esse alguém vai acordar ao seu lado numa manhã clara de domingo ou numa segunda de céu acinzentado, vai te abraçar com força e dizer que vai ficar tudo bem, mesmo que nada esteja, que vai puxar a sua orelha na hora certa, te dizer que você está errada e te fazer aquelas cócegas que você tanto odeia só para te ver rindo.

Alguém que vai comprar uma escova de dente para colocar ao lado da sua, o shampoo adequado ao lado do seu, que ganhará um lado da cama e quem sabe o controle da televisão da sala, que vai te beijar docemente e te amar loucamente, vai fazer amor um dia e querer trepar no outro, vai te tratar bem, muito bem, vai embarcar nas suas loucuras e ficar louca também, vai rir das piadas sem graça e te fazer uma massagem quando você menos esperar.

Esse alguém não vai ligar para o seu corpo, para as gordurinhas aparentes ou para as espinhas do seu rosto, essa pessoa vai te querer do jeitinho que você acorda, sem maquiagens ou muitas apresentações e vai te amar, te amar, te amar. Vai te acompanhar numa conversa por longas horas, dias, meses, anos, décadas e mesmo quando ela estiver longe, você a sentirá bem perto. Porque amar é assim, sem muita complicação, sem muita cobrança e para dar certo, basta estar perto!

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

RETRATO, de Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

(Obra poética, Volume 4, Biblioteca luso-brasileira: Série brasileira. Companhia J. Aguilar Editora, 1958, p. 10)

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

CRÔNICA ENGRAÇADA, por Luís Fernando Veríssimo



Minha mulher e eu temos o segredo para fazer um casamento durar:

Duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.

Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em SP.

Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.

Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento, “em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!” ela disse. Então, sugeri a cozinha.

Nós sempre andamos de mãos dadas…Se eu soltar, ela vai às compras!

Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão, tudo elétrico. Então, ela disse: “nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar”. Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica.

Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente, 100 % dos divórcios começam com o casamento.

Eu me casei com a “senhora certa”. Só não sabia que o primeiro nome dela era “sempre”.

Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.

Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha.

Ela perguntou: “O que tem na TV?”

E eu disse: “Poeira”.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

ANTES DO NOME, de Adélia Prado

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”,
o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

GOSTO QUANDO TE CALAS, de Pablo Neruda

Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado
e parece que um beijo te fechara a boca.

Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.

Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.

Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longínquo e singelo.

Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O SOBREVIVENTE, de Carlos Drummond de Andrade

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.

Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

EU QUERIA TRAZER-TE UNS VERSOS MUITO LINDOS, de Mário Quintana

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim…
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir…
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas… e que estão escritas
do lado de fora do papel… Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da poesia…
como
uma pobre lanterna que incendiou!

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

IRONIA DE LÁGRIMAS, de Cruz e Sousa

Junto da morte é que floresce a vida!
Andamos rindo junto a sepultura.
A boca aberta, escancarada, escura
Da cova é como flor apodrecida.

A Morte lembra a estranha Margarida
Do nosso corpo, Fausto sem ventura…
Ela anda em torno a toda criatura
Numa dança macabra indefinida.

Vem revestida em suas negras sedas
E a marteladas lúgubres e tredas
Das Ilusões o eterno esquife prega.

E adeus caminhos vãos mundos risonhos!
Lá vem a loba que devora os sonhos,
Faminta, absconsa, imponderada cega!

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

EU ESCREVI UM POEMA TRISTE, de Mário Quintana

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza…
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel…
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves…
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!


quinta-feira, 1 de outubro de 2015

VERSOS ÍNTIMOS, de Augusto dos Anjos

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te a lama que te espera!
O Homem que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera

Toma um fósforo, acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa ainda pena a tua chaga
Apedreja essa mão vil que te afaga.
Escarra nessa boca de que beija!